Helena Costa: "Dizem que sou o Gandhi, mas não gosto que ponham o meu trabalho em causa"
É scouter do clube desde 2007, a "olheira" que vê os jogos portugueses de futebol para indicar jovens jogadores ao clube escocês. É comentadora de futebol, dá aulas na Universidade Lusófona, onde também faz doutoramento em Educação Física e Desporto, na especialidade de scouting. Licenciou-se na Faculdade de Motricidade Humana, Jamor, e especializou-se em treino de futebol. Os estudos foram a compensação à falta de interesse da família pela modalidade. Nem viam os jogos, ela via os desafios na casa dos vizinhos. Os pais não a deixaram ir a um treino de captação do Sporting. Ficou-se pelos clubes locais e sem história. Bem diferente é a vida como treinadora. Começou a treinar os mais pequenos do futebol masculino no Sport Lisboa e Benfica, onde trabalhou com os sub-8, sub-9 e sub-10 até chegar aos sub-17, aqui como treinadora adjunta. Saiu da Luz para o Cheleirense masculino, Mafra, depois de duas épocas seguidas no 1º de Dezembro, a sua primeira experiência no futebol feminino, e passou para o Odivelas. Em 2008 é convidada para formar a estrutura do futebol feminino no Qatar, um dos requisitos para a organização do Mundial 2022. Treinou depois a seleção feminina do Irão e foi notícia mundial ao ser contratada para uma equipa masculina da II divisão francesa. Bateu com a porta porque entendeu que o seu trabalho não foi respeitado. Tem 37 anos, nasceu em Alhandra, e fez um acordo com o companheiro, que é do meio futebolístico. Não falam um do outro nas entrevistas.
Foi notícia há um ano por ser a primeira mulher a treinar uma equipa de futebol masculina da II Divisão em França, o Clermont Foot Auvergne 63. Porque é que não chegou a treinar a equipa?
As coisas estavam a correr bem, o presidente tinha-me dito que a única pessoa com quem eu trataria dos assuntos relativos ao clube era com o diretor desportivo. Estávamos há um mês a trabalhar na formação do plantel e, de repente, no planeamento da época, deixei de ter contacto com ele. Foi de férias, deixou de responder aos e-mails, aos telefonemas e portanto deixei de ter acesso ao planeamento do que seria a pré-época. Tive, inclusivamente, reuniões com o staff médico e técnico. Até aí discutíamos todos as contratações: eu sugeria uns nomes, ele outros.
Já trabalhava com os jogadores?
Ainda não. Tinha um planeamento da pré-época a fazer e isso foi altamente comprometido. Para agravar, quando o presidente respondeu, respondeu de forma um pouco impetuosa - mas isso, sinceramente, não me atrapalha - e contratou um jogador que não ia fazer parte do plantel (guarda-redes). Acima de tudo, o meu trabalho foi comprometido perante o meu staff e os meus jogadores.
Sentiu-se desrespeitada?
Não foi a Helena Costa que foi desrespeitada, foi todo um trabalho que foi desrespeitado. E se as coisas antes de começarem já iam neste sentido, imagino o cenário eventualmente menos bom que poderia vir a seguir. Para ter noção, na véspera do início dos trabalhos não tinha qualquer tipo de resposta relativa ao que se iria fazer.
Ainda trabalhou mais ou menos um mês no clube. Foi bem aceite?
Sim. O clube? Impecável. A relação com o diretor desportivo também, discutíamos o plantel, eu sugeria nomes de jogadores e ele fazia exatamente o mesmo. As coisas estavam a correr realmente muito bem.
No futebol, muitas vezes são os diretores técnicos e até a direção do clube que escolhem a equipa.
Estou no mundo do scouting e sei perfeitamente que isso é assim, que em muitos países e em muitos clubes há essa cultura: que é o diretor desportivo ou o secretário técnico ou, eventualmente, até o presidente que têm a liberdade de contratação. Ali, não foi o caso, havia um compromisso de que só seriam contratados com o meu aval. Mas não foi por contratarem o jogador A ou B, foi por ver todo o meu trabalho comprometido.
Na altura deu a entender que foi uma questão de marketing contratarem uma mulher?
Tenho essa sensação, mas não quero entrar muito por aí. É um episódio fechado. Não me arrependo de ter ido nem de ter saído.
Hoje teria tomado essa decisão?
Sim, porque sempre alertei para que olhassem para mim como treinadora e não como marketing. Tive noção clara, até porque foi exagerado, do boom que foi a minha contratação a nível mundial. Mas estava ali enquanto treinadora.
Estava realmente preparada?
Sim. Quer dizer, a informação foi de um dia para o outro e antes de eu ter sequer assinado um compromisso. Eu sabia que ia ter um boom, mas foi exageradíssimo.
Exagerado como?
Imagine. Estava numa televisão 15 minutos, saía, ia para uma rádio mais 15 minutos, depois saía para outra televisão e foram dois dias nisto. Tive pessoas a ligarem-me do Japão à China, do Brasil aos Estados Unidos, passando pelo México e Líbano...
Quando decidiu sair, teve a solidariedade dos jogadores?
Não, os jogadores estavam de férias e no dia da apresentação não me apresentei até falar com o presidente. Mas vamos passar a outro assunto, este está encerrado.
Diz que é uma questão de personalidade. É de trato difícil?
Não. Costumam dizer-me que sou um bocadinho Gandhi, de tão calma que sou. Mas não gosto que o meu trabalho seja colocado em causa por coisas que me são alheias. Ainda por cima, com o impacto que teve a minha contratação, qualquer escorregadela ou coisa bem feita ia dar nas vistas.
Porque não é a primeira vez que sai de um sítio em litígio, por exemplo, quando treinava a equipa de futebol feminina no 1.º de Dezembro.
Não. Terminei a época e saí porque tinha 11 meses de salários em atraso, portanto, isso não é litígio.
Teve convites para treinadora depois do Clermont Foot 63?
Tive imediatamente a seguir o convite do Arsenal para treinar a equipa feminina e decidi que era uma boa altura por motivos pessoais. Tive outras abordagens, sim.
Não pode ter ficado "queimada" devido ao episódio francês?
Acho que não, acho até que poderá ter acontecido o contrário. No fundo, demonstrei que não tolero que impliquem diretamente com o meu trabalho e que possam pôr a minha competência em causa.
Na próxima época, vamos vê-la a treinar algum clube?
Ainda não tenho esses dons de prever o futuro, mas não fecho a porta.
É "olheira" (prospeção de jogadores), dá aulas, é treinadora e comentadora, do que gosta mais?
Bem, de treinadora, neste momento, não estou a fazer. A de comentadora é uma atividade nova e pela qual me apaixonei este ano. O trabalho de scout (olheira) é uma área apaixonante, muito difícil e de grande responsabilidade. É mexer com milhões e prever o futuro de um jogador, transferi-lo de uma zona onde se pode visualizar aquilo de que é capaz e de prever o seu futuro num meio completamente diferente. É muito difícil quando se tem milhões atrás de uma decisão. Obviamente que sou só observadora, não tenho esse nível de decisão, mas é extremamente aliciante.
O que é que faz exatamente no Celtic de Glasgow?
O scout, basicamente, escrutina todas as equipas da liga profissional. O alvo é a liga principal e a segunda liga e, no meu caso, especificamente para Portugal. O objetivo é indicar jogadores tendo em conta o modelo de jogo de uma equipa e que o treinador e o chief scout solicitam. Não é fácil mas é muito aliciante. E ser mais rápido do que os outros conta.
Nas contratações?
Sim, desde ver ao contratar um jogador é um processo que deve ser rápido, para não encarecer, para chegarmos primeiro, e obviamente há clubes com budgets e com possibilidades diferentes.
Falou em olheiro principal, o Celtic tem quantos olheiros?
Estou proibida de falar da estrutura do Celtic.
Observa sobretudo jovens?
Sim, vejo sobretudo os juniores.
E quantos jogadores já indicou que foram para o Celtic?
Ninguém. Tivemos alguns à experiência contactados por mim que não ficaram e temos um português, o Baldé [emprestado], mas eu não estava no Celtic. Entre ver e o comprar vai uma grande distância.
Parece algo secreto, como é que fazem para passar despercebidos quando veem os jogos?
Em Portugal acontece algo que não acontece noutros países, os media dizem quem está nos jogos. Num jogo do Sporting com a Académica dizem quem são os scouts presentes. Portanto, aqui não há segredos. Mas o mundo do scouting é muito pequenino. Já conheço os scouts do Tottenham, do Benfica, da Académica...
E ganha-se bem?
Depende dos países, das ligas, de muita coisa. Não há um patamar que possa dizer que seja indicativo.
O que é que a alicia mais?
Nem sei responder, mas é apaixonante ver qualidades num jogador e antever que vai ter sucesso numa realidade diferente. E depois há a função económica, que é o facto de trazer ao clube um ativo que depois é rentabilizado. É uma venda, seja em que clube for, por isso lhe dizia que estamos a falar de milhões.
Estamos em período de transferências no futebol e contratam--se jogadores como grandes apostas que depois não se confirmam.
Só não erra quem não está nesta área. Há muitas questões que interferem com a adaptação de um jogador e isso não depende só do scout que observa. Nem todas as instituições trabalham de uma forma igual, portanto depende da organização interna de cada clube.
E há o poder dos agentes dos jogadores, que podem levar até eventualmente um treinador a usar um jogador para o valorizar.
Cá está, depende da personalidade do treinador. Eu nunca poria em jogo alguém se não pensasse que fosse uma mais-valia para o meu trabalho e para o clube.
Quais os portugueses que levaria para o Celtic de Glasgow?
Não vou responder, não posso.
E pode dizer qual é o seu clube?
Posso, já o referi várias vezes. Normalmente, as pessoas não acreditam mas é verdade, é a Académica de Coimbra. Já o disse ao treinador.
Essa é fácil, é um clube com o qual muita gente simpatiza depois de "sofrer" por um dos grandes. Estudou em Coimbra.
Estudei em Lisboa, aqui no Jamor, fiz o curso de Educação Física e o mestrado e agora estou a tirar o doutoramento em Educação Física e Desporto com a especialidade de scouting na Lusófona. A simpatia pelo Académica é das poucas coisas do futebol que o meu pai me passou. Ele praticamente não vê futebol, eu ia ver a casa do vizinho.
Escolheu o futebol por contestação?
Não, não tenho explicação. Passava os fins de semana a jogar na rua com um amigo e depois o grupo foi crescendo. Não tenho qualquer tipo de influência na família, pelo contrário. Convidaram-me para fazer testes de captação no Sporting, tinha 12 anos, e os meus pais não deixaram. Teria de ir para Lisboa todos os dias, depois havia a escola, era muito nova e ia para uma equipa sénior. Recusaram e eu continuei a jogar no meu nivelzinho baixo e, quando tive oportunidade, investi nos estudos.
Porque existem poucas referências à sua carreira de jogadora?
Porque não há muita coisa, joguei a um nível muito baixo. Cheguei a estar na Casa do Benfica de Alverca e depois fui para o Arrudense, que foi o clube em que joguei mais.
Como é que se dá o salto para ser treinadora?
Estava na licenciatura e estabeleceu-se um protocolo entre o Sport Lisboa e Benfica, a Escola de Futebol do Benfica e a Faculdade de Motricidade Humana, onde tirei o curso. Admitiam oito estudantes para fazer um estágio de um ano e concorri, mesmo não tendo a cadeira de Pedagogia do Desporto, que era um dos requisitos. Mas arrisquei e fui admitida, tinha 19 anos. Estive um ano como estagiária e no seguinte fui convidada para treinadora principal, e mantive-me lá 13 épocas. E passei para as escolas A, já de competição.
Como é que chegou ao Celtic de Glasgow como olheira?
Em Portugal não estava a conseguir entrar nos cursos de treinadores e fui para a Escócia para tirar o 3.º nível de treinador, mas que acabei por concluir cá. Havia um ano entre a parte de iniciação e os exames finais e acabei por ser aceite aqui, gastava menos dinheiro do que ir fazer os exames lá. Mas durante praticamente um ano fui várias vezes à Escócia. A partir daí, surgiram contactos.
Sente que foi sempre abrindo portas?
Sim, basicamente. O mais importante é abrir portas para quem vem atrás, seja enquanto treinadora seja como scout, que eu tenha conhecimento, nesta área sou a única. Acima de tudo, sinto que consegui abrir portas no trabalho que fiz no Qatar, e essa é uma gratificação muito grande.
Foi uma experiência diferente do que estava habituada já que a cultura é completamente diferente da europeia?
Foi uma experiência enorme. Quando cheguei, tinha três jogadoras e quatro bolas e disseram--me: "Agora constrói o futebol feminino no país." O que havia era um grupo de miúdas, da universidade, que jogavam e que faziam um torneio que durava, no máximo, uma semana. A maioria tinha a idade sénior, até porque se tratava de um torneio da universidade, o problema era a estrutura, a base. E pediam-me para criar a seleção de sub-13, que é a primeira seleção da Ásia - aqui, a primeira seleção é a sub-17 -, e foi o que fiz em dois anos e meio. Olhando para trás e pensando nas diferenças culturais e nas dificuldades, fiz um bom trabalho e não sou de me autoelogiar.
Nunca lhe apeteceu vir embora?
Não. Para já, foi a primeira oportunidade que tive para trabalhar enquanto profissional, o que era uma motivação enorme. E senti que tinha uma missão que poderia mexer com aquela cultura. O que fiz foi criar uma escola de futebol a nível nacional. Doha [capital do Qatar] é basicamente o país, o que facilitou. Em pouquíssimos meses tinha à volta de 240 miúdas a treinar e era eu que dava os treinos a todas.
Como fazia?
Deslocava-me às escolas. Houve ali uma estrutura muito bem montada entre a escola e o Comité Olímpico da Mulher, no sentido de fornecer almoço e transporte para que fossem treinar após o horário escolar. E foi criado o desporto escolar. As melhores começaram a formar a seleção de sub-13, mas foi muito difícil conseguir que os pais as deixassem jogar. Tive praticamente de bater às portas.
Por causa das roupas?
Sim, esse era um problema. O Comité Olímpico da Mulher criou um equipamento que respeitava a questão cultural, como é óbvio. Tinham T-shirt e calções, mas usavam uma badana para tapar o cabelo e tinham mangas compridas e collants por baixo da T-shirt e dos calções. Isto quando se expunham, porque treinávamos na Aspire, uma academia de desporto masculino, depois dos rapazes saírem, e que estava fechada ao público.
E convenceu algumas famílias.
A luta era a família deixar. E do deixar ao poder ser filmado ou fotografado foi outro passo muito grande. Senti que essas miúdas tinham de ter uma referência, além de que o país precisava de uma seleção feminina sénior para ganhar a organização do Mundial [2022].
E quando começaram a jogar?
A primeira participação, que contava para o ranking FIFA e era importantíssimo para termos o Mundial 2022 no Qatar, foi no Bahrein. Era o jogo de abertura do torneio, uma coisa em grande e com transmissão televisiva, o que nós não sabíamos. E uma das coisas que as jogadoras perguntavam e as famílias tinham como garantia era que não seriam filmadas. Não tivemos essa informação e houve imensos problemas, jogadoras a cantar o hino nacional a olhar para baixo, a esconder a cara. Houve uma jogadora de grande qualidade que teve pormenores técnicos muito bons durante o jogo e que foi constantemente filmada. Teve de regressar à noite ao Qatar, não só a família exigiu como a entidade empregadora lhe disse que senão acabasse com aquilo era despedida. Parecia quase o Big Brother . Era tudo a chorar por ela se ir embora, e as consequências que isso teve para as outras? Aí abanou um bocadinho.
E os resultados futebolísticos?
Uma seleção que está a começar não tem bons resultados, isso era óbvio para nós, mas o impacto cultural que teve nas vidas delas foi enorme. Travou-se um bocadinho o processo com aquele primeiro jogo. A partir daí, houve um outro impulso da federação de futebol e as coisas foram a bom porto. Criei a seleção A, a seleção de sub-13, a escola de futebol e um campeonato nacional, nos vários escalões. Tudo porque havia uma aprendizagem tática que ninguém tinha. E criei um curso de treinadores, não só para os professores do Qatar mas também para o Médio Oriente. Vinham de todo o lado, do Iraque, do Líbano, do Dubai, de todos os Emirados. E abri-lhes a possibilidade de serem felizes, criei uma excelente relação até com famílias.
É curioso existir um Comité Olímpico da Mulher.
Existe o Comité Olímpico [CO]e o Comité Olímpico da Mulher [COM]em todo o Médio Oriente. Foram eles os responsáveis pela minha contratação, o meu contrato era com o COM. Os contratos com os treinadores que trabalham nas federações de futebol são normalmente com o CO; no caso das mulheres, são com o COM, polo do Comité Olímpico.
Porque trocou o Qatar pelo Irão?
Deixei o Qatar no final do contrato, já tinha cumprido a minha missão e precisava de algo mais em termos competitivos. Além de que foi um trabalho desgastante. Tinha o dia todo preenchido e as escolas começavam cedíssimo. Às 07.30 já estava numa escola para ver miúdas, depois havia o desporto escolar, que era preciso impulsionar. Eu começava de manhã e acabava à noite. E fazia o resto: comprar equipamentos, ligar ao senhor que marcava as linhas do campo, etc. Por exemplo, as pessoas não tinham noção do que era o trabalho de um manager, de um fisioterapeuta.
E no Irão tinha de andar de cabeça tapada.
Tinha, mas esqueci-me várias vezes. Cheguei a sair do hotel, descer as escadas e ver as pessoas a olharem para mim. E eu: "Mas o que é que se passa?"
Usava lenço?
Uma boina ou um lenço.
As jogadoras jogam todas cobertas. Habituam-se ou é mesmo desconfortável?
É muito desconfortável. Também tenho uma história no Irão por causa do equipamento. Numa qualificação - o equivalente ao campeonato europeu - no Bangladesh, com tempo húmido, quente, horrível, uma jogadora queria usar duas camisolas. Eu sugeri que não o fizesse. Já bastava o calor e a humidade. Elas já usam camisola de manga comprida e uma espécie de bermudas, por cima das quais põem as meias. Foi num jogo contra a Tailândia e numa fotografia ela aparece com um bocadinho da barriga à mostra, um puxão que lhe deram. Tínhamos sempre uma segurança do governo a acompanhar-nos para fazer o relato e fomos chamadas só por isso.
Onde gostou mais de trabalhar, no Irão ou no Qatar?
São coisas diferentes. O nível do futebol é muito mais desenvolvido no Irão, portanto, a nível de trabalho competitivo foi mais engraçado. Embora também trabalhasse muito, era coordenadora técnica de todos os escalões e estava todos os dias no centro de treinos. Havia uma academia e eu treinava ao lado dos escalões masculinos, praticamente ao lado do Carlos Queirós.
Aí, sentiu-se mais acompanhada.
Sim, foi muito bom nesse aspeto. O [António] Simões, o Daniel Gaspar e o Queirós eram a minha família. E vivia ao lado também de uns brasileiros que estavam, e estão, no futebol de praia. Tirando isso, tive pouca vida social, estava sempre a trabalhar. Tive mais vida social no Qatar. Agora, fui muito bem recebida e o Irão não é nada do que as pessoas pensam.
Realidades muito diferentes.
Sim, sim. Havia muito mais estrangeiros no Qatar, portanto, a vida social era diferente, também não tinha de andar com o cabelo coberto. A nível de trabalho foi diferente porque no Qatar tive de fazer tudo desde o início. No Irão as coisas estavam muito mais desenvolvidas, era um meio mais competitivo, mais exigente.
Gostava de voltar ao Médio Oriente? Teve convites?
Já tive essa possibilidade e já voltei para visitar. Não voltei para trabalhar, mas não fecho a porta. Nunca se sabe o futuro e tenho excelentes relações com essas pessoas.
Teme que o facto de estar parada há mais de um ano faça esquecer o que fez como treinadora?
Não, não. Sobretudo em meios como esses. De todo.
E ainda continuam a chamar-lhe "o Mourinho de saias"?
Às vezes, não ligo muito. Since-ramente, não ligo nenhuma.
É um elogio ou não?
Claro que é um elogio. O Mourinho é um treinador de topo. Mas também me podiam chamar "Guardiola de saias" ou "Queirós de saias". Isso é um estímulo por ser mulher.
Gostava de treinar em Portugal ou prefere trabalhar no estrangeiro?
Depende do momento, dos projetos, das pessoas, depende de muita coisa. Não fui para o Arsenal e as coisas estavam bem encaminhadas - era uma equipa feminina, das melhores da Europa e do mundo -, não fui por motivos pessoais. E portanto isso pode acontecer com uma equipa masculina.
"Homem ou mulher, se não Tem competência não tem Validade"
A questão de ser mulher pesou na decisão de ser treinadora?
Não. Quando comecei não existiam treinadoras mulheres no futebol masculino e sabia que seria mais bem aceite no meio feminino. E passar de um meio mais amador para um mais profissional é um grande passo.
Está a falar dos jogadores?
Não. No início pode haver um pé atrás. Mas as dúvidas acabam, seja homem ou mulher, a partir do momento em que se demonstra competência. É o que me diz a experiência que tive no futebol masculino, com adultos ou pré--adultos (juvenis), em clubes grandes, como o Benfica.
O facto de ser mulher alguma vez lhe facilitou a vida?
Não. Houve momentos em que foi mais difícil ter uma oportunidade por ser mulher. Houve outros em que depois da competência demonstrada, se calhar, pode ter facilitado.
E o facto de ser bonita, comentou que está habituada ao estereótipo de que as futebolistas são feias e não se arranjam...
Sim, o estereótipo existe, sobretudo em relação à ex-jogadora, não tanto enquanto treinadora, mas também não há muitos exemplos. A ideia da jogadora com um ar muito masculino está, na minha opinião, completamente ultrapassada. Há jogadoras que são modelos e estou a falar em Portugal, não lá fora.
Como treinadora, tem um comportamento diferente quando está com uma equipa masculina e com uma feminina?
Há coisas que são naturais. Uma das curiosidades quando fui para o Clermont era saber se ia entrar no balneário. Claro que não entro no balneário masculino, como um treinador homem não entra no feminino, e há muitos a treinar equipas femininas. Agora, a relação estabelecida é de treinador-jogador, o que depende da personalidade das pessoas, não do facto de ser homem ou mulher.
Tem uma frase: "A competência não se mede pelo género." É sua ou é uma adaptação?
É minha, digo isso desde que comecei a treinar, e na altura era só a escolinha do Benfica, os miudinhos. Volto a dizer: a competência não se mede pelo género. Seja homem ou mulher, se não for competente não tem tempo de validade enquanto treinador.
Mas o género pode ser um entrave nesta profissão?
Para iniciar o trabalho pode ser. Mas deixa de o ser a partir do momento em que se demonstra qualidade. E volto a dizer que o primeiro treino tem muita importância para mudar a opinião e criar o sentimento de que a época pode correr bem.
Um homem no seu lugar também teria batido com a porta?
De certeza que há homens que tolerariam que o seu trabalho fosse posto em causa, como há outros que não tolerariam. Eu ainda não tinha começado a trabalhar com os jogadores e já havia uma série de problemas.
Quando tirou o curso de treinadora foi uma das melhores, mas haverá homens que tiveram pior classificação e que estão em equipas seniores do futebol masculino.
Estão. Felizmente, nunca tive falta de oportunidades, mas não cairão do céu e não houve influência familiar. O que consegui foi fruto do meu trabalho e do meu sacrifício e acredito que os meus colegas homens também trabalharam para isso, o resto, são as escolhas dos dirigentes.
Teve convites das principais ligas masculinas no país?
Tive algumas abordagens da II Liga.